Estranhamente, todos estavam impecavelmente vestidos, como se fosse dia de festa. O senhor ao meu lado, um pouco pálido, não por acaso, claro, não deixava de ser um defunto jeitoso. Sempre fui sensível a um homem de fato. Morto ou vivo (fiquei a saber). Deduzi que fosse bastante popular dado o número de pessoas a chorar por ele. O problema de ter um velório partilhado era lidar com os pingos de água benta que os amigos do falecido faziam questão de dividir comigo. Que os reservassem para ele! Já bastava estar morta, e ainda ter de passar por esta provação.
Resolvi então sair de mim e vaguear pelo teto, espreitar os inconsoláveis familiares do jeitoso lá de baixo. Cheguei a desafiá-lo para me acompanhar, mas ele, de nariz empinado, parecia demasiado compenetrado em absorver a dor dos herdeiros que entre uma lágrima e outra iam calculando o valor das partilhas. E ainda dizem que, na morte, somos todos iguais. Ora, o enjoadinho, a dar-se a uns ares de superioridade, como se ignorasse por completo que já não era deste mundo.
Quando finalmente a família se retirou, a família dele, claro, eu tive direito a duas vizinhas e três beatas lá do bairro, que saíram a toda a velocidade, após um Pai Nosso mal rezado, como se tivessem deixado o jantar ao lume.
Ficámos nós dois, lado a lado. Ele a fingir que não estava lá. Eu mortinha por o provocar. Então, é assim que queres passar para a eternidade? Deitado numa almofada de cetim, rodeado de flores murchas e um cheiro de velas que não inspira ninguém?
Olhou-me como se me tivesse visto pela primeira vez.
-Tens uma ideia melhor?
Este lugar é um tédio. Disse enquanto flutuava à sua frente. Já pensaste em sair daqui? Há mais vida lá fora. Quer dizer, vida não é o termo certo, mas percebes onde quero chegar.
Ele hesitou, mas bastou um leve gesto para que largasse aquele cenário deprimente e viesse comigo. Saímos de mãos dadas pela porta principal, atravessando paredes como se fossem cortinas de fumo.
Foi assim que começou a nossa nova existência, assombrando alguém apenas por diversão. Soprar chapéus, esconder objetos. Rir da senhora que jurava ter visto as jarras mudarem de lugar sozinhas na biblioteca municipal.
Descobrimos que o mundo é muito mais interessante quando não há nada a perder.
E de assombração em assombração, fomos felizes eternamente…
Eu disse fomos?
Somos! Assim é que é.