Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

DESABAFOS

Razoavelmente insuportável…

Razoavelmente insuportável…

DESABAFOS

16
Dez23

A consoada...


ROMI

15731726_1334761116555452_4702735024465934072_o.jp     Imagem do meu álbum "Natal na aldeia"

Fechou a porta. Confirmou que tinha o porta moedas no bolso do avental e seguiu pela vereda estreita, com a alcofa das compras pendurada no braço. 

Tinha tudo bem planeado, caso lhe perguntassem, ia passar o Natal com a filha, a Lisboa. Foi o que disse à Alice, a vizinha do lado, quando a convidou para ir passar a consoada com eles. Alice tinha a casa cheia, as filhas, os dois genros e os 3 netos. 

No caminho encontrou pouca gente, mas a pergunta inevitável surgiu. Uma deu-lhe filhós, para levar à filha. Outra deu-lhe duas farinheiras, uma morcela e uma chouriça. Não teve como recusar. Quando chegou à mercearia já levava a alcofa cheia. Comprou duas caixas de bombons, daqueles caros que a filha gosta. Pediu para embrulhar e escolheu um laço dourado. À pergunta da merceeira, respondeu que ia no dia seguinte, na carreira que passa no bairro às sete e dez. A filha ia esperá-la à estação. Ela própria acreditou no que estava a dizer.

A filha tinha vergonha dela, sabia. Mas percebeu. Os sogros eram muito finos, uns senhores. E muito bem prontos. Eram doutores, como a filha e o genro, que também era doutor, mas engenheiro. Sabiam comer de faca e garfo e falavam como os senhores da televisão. Ela sabia assinar o nome e os números até dez, foi a filha que lhe ensinou. Àh, e gostava de ópera. Olaré, até tinha um gira discos velhinho que o patrão lhe tinha dado, quando se apercebeu que ela gostava de ópera. Porque quando ouvia aquelas músicas ela parava o que estava a fazer e encostava o ouvido à porta. Também lhe deu um disco dos grandes e prometeu outro, que nunca chegou a dar. Mas não lhe levou a mal, há pessoas que gostam de dizer que fazem coisas que depois não fazem. 

Com estes pensamentos chegou a casa. Tinha de adiantar alguma coisa para comer no dia seguinte, de modo a não fazer barulho, não fosse a vizinha aperceber-se. As paredes parecem de papel, ouve-se tudo de uma casa para a outra. O pior era não poder acender o lume, por causa do fumo a sair da chaminé. Mas tinha muitos cobertores para se agasalhar, que tinha comprado num leilão, lá para os lados de Alpedrinha. Não podia ligar o aquecedor elétrico que às vezes o quadro ia abaixo. E não se podia esquecer de se despedir da vizinha. Que sorte ter-se lembrado deste pormenor.

No dia seguinte, encerrou tudo como se realmente fosse de abalada. Passou a maior parte do tempo deitada, quase às escuras, entrava uma réstia de luz pela telha de vidro que tinha na cozinha. Nem fome tinha. Tentou comer um bombom da filha, mas soube-lhe a lágrimas.

De vez em quando ouvia o telefone da vizinha tocar. Ela nunca quis telefone, a filha já tinha gasto dinheiro nos óculos e nos dentes novos, a que nunca se habituou, e não quis dar-lhe mais essa despesa. 

Quase oito da noite. Batem-lhe à porta. -” Ó Lena, abre ca gente sabe que tás aí. Ligou a tua filha a desejar um bom Natal e o ti Flipe disse que hoje não houve camenete da carrêra. Anda comer para irmos à missa do galo”.

Acendeu a luz, calçou os sapatos de domingo, embrulhou-se no xale de lã grossa que lhe cobriu a cabeça e respondeu ao apelo de quem lhe queria bem.

Nunca soube se tinha esgotado as lágrimas, se estava demasiado feliz para chorar. 

 

Olhou para os vizinhos e viu anjos.

Ignorou a saudade e chamou-lhe Natal.

 

II

 

Na manhã seguinte, dia de Natal, Lena acordou e o sentimento de culpa acordou com ela. Tinha enganado as pessoas da aldeia. O orgulho ferido impediu-a de dizer a verdade.  Assumir perante todos que a filha não queria passar o Natal com ela, estava muito além do que o amor próprio poderia suportar. Quis devolver as ofertas para a filha. Justificar-se, dizer que não quis que ficassem tristes por ela.

Claro que toda a gente  percebeu e perdoou, num misto de empatia e compaixão. E Lena respirou de alívio. Recusou gentilmente os convites para o almoço de Natal. Já estava em paz e tinha a comida que sobrara do dia anterior. 

A aldeia estava deserta, imensos carros estacionados nos lugares por norma vazios, indicavam a deslocação da família que vivia longe. 

Acendeu o lume, desta vez não poupou na lenha, sentou-se ao quentinho e rezou o terço. 

Páram dois carros no largo em frente à casa. O coração bate forte. Agarra-se ao terço com mais força quando lhe batem à porta. A filha, o genro, os senhores e um casal novo  que não conhecia.

E ela ali, sem os sapatos de domingo, nem o xaile a cobrir-lhe o avental. O abraço interminável da filha. O abraço confortável do genro. Os senhores, no cumprimento moderado e educado. O outro casal , filho e nora dos senhores, mais descontraídos e informais. 



A filha, nas véspera desse dia, liga para a Alice, a desejar um feliz Natal e pede para falar com a mãe. A Alice, admirada, consegue balbuciar que supostamente a mãe teria ido passar o Natal com ela. No mesmo instante, ambas percebem a situação.

Perante o desconforto da nora, os senhores, ficam verdadeiramente incomodados, e reprovam a atitude. A consoada decorre sem o glamour habitual. Mas a senhora tem a solução. Embalar tudo o que está na mesa, mais o adiantado para o dia seguinte, e almoçar com a Lena no dia de Natal.

 

A senhora, em chique, com as unhas muito bem arranjadas, de salto alto, a contrastar com as pantufas da Lena, em gesto snob, tapa ao de leve os lábios com a as pontas dos dedos, sempre que sorri com algo na boca. A Lena, feliz, sempre que ri, tapa a cara com a dobra do braço, talvez para encobrir a falta de dentes, talvez para mostrar à filha que nada poderá mudar a sua essência, por  muita vergonha que isso lhe provoque. 

Sentiu uma ponta de ciúme, quando a filha lançou à sogra um olhar terno, cheio de gratidão. 

Lena nunca soube de quem tinha sido a iniciativa do almoço de Natal em família, atribuiu à filha. 

A senhora, que era doutora e falava como os senhores da televisão, deixou-a ficar nessa ilusão. 

 

37 comentários

Comentar post

Pág. 1/2

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Em destaque no SAPO Blogs
pub