A consoada...
ROMI
Imagem do meu álbum "Natal na aldeia"
Fechou a porta. Confirmou que tinha o porta moedas no bolso do avental e seguiu pela vereda estreita, com a alcofa das compras pendurada no braço.
Tinha tudo bem planeado, caso lhe perguntassem, ia passar o Natal com a filha, a Lisboa. Foi o que disse à Alice, a vizinha do lado, quando a convidou para ir passar a consoada com eles. Alice tinha a casa cheia, as filhas, os dois genros e os 3 netos.
No caminho encontrou pouca gente, mas a pergunta inevitável surgiu. Uma deu-lhe filhós, para levar à filha. Outra deu-lhe duas farinheiras, uma morcela e uma chouriça. Não teve como recusar. Quando chegou à mercearia já levava a alcofa cheia. Comprou duas caixas de bombons, daqueles caros que a filha gosta. Pediu para embrulhar e escolheu um laço dourado. À pergunta da merceeira, respondeu que ia no dia seguinte, na carreira que passa no bairro às sete e dez. A filha ia esperá-la à estação. Ela própria acreditou no que estava a dizer.
A filha tinha vergonha dela, sabia. Mas percebeu. Os sogros eram muito finos, uns senhores. E muito bem prontos. Eram doutores, como a filha e o genro, que também era doutor, mas engenheiro. Sabiam comer de faca e garfo e falavam como os senhores da televisão. Ela sabia assinar o nome e os números até dez, foi a filha que lhe ensinou. Àh, e gostava de ópera. Olaré, até tinha um gira discos velhinho que o patrão lhe tinha dado, quando se apercebeu que ela gostava de ópera. Porque quando ouvia aquelas músicas ela parava o que estava a fazer e encostava o ouvido à porta. Também lhe deu um disco dos grandes e prometeu outro, que nunca chegou a dar. Mas não lhe levou a mal, há pessoas que gostam de dizer que fazem coisas que depois não fazem.
Com estes pensamentos chegou a casa. Tinha de adiantar alguma coisa para comer no dia seguinte, de modo a não fazer barulho, não fosse a vizinha aperceber-se. As paredes parecem de papel, ouve-se tudo de uma casa para a outra. O pior era não poder acender o lume, por causa do fumo a sair da chaminé. Mas tinha muitos cobertores para se agasalhar, que tinha comprado num leilão, lá para os lados de Alpedrinha. Não podia ligar o aquecedor elétrico que às vezes o quadro ia abaixo. E não se podia esquecer de se despedir da vizinha. Que sorte ter-se lembrado deste pormenor.
No dia seguinte, encerrou tudo como se realmente fosse de abalada. Passou a maior parte do tempo deitada, quase às escuras, entrava uma réstia de luz pela telha de vidro que tinha na cozinha. Nem fome tinha. Tentou comer um bombom da filha, mas soube-lhe a lágrimas.
De vez em quando ouvia o telefone da vizinha tocar. Ela nunca quis telefone, a filha já tinha gasto dinheiro nos óculos e nos dentes novos, a que nunca se habituou, e não quis dar-lhe mais essa despesa.
Quase oito da noite. Batem-lhe à porta. -” Ó Lena, abre ca gente sabe que tás aí. Ligou a tua filha a desejar um bom Natal e o ti Flipe disse que hoje não houve camenete da carrêra. Anda comer para irmos à missa do galo”.
Acendeu a luz, calçou os sapatos de domingo, embrulhou-se no xale de lã grossa que lhe cobriu a cabeça e respondeu ao apelo de quem lhe queria bem.
Nunca soube se tinha esgotado as lágrimas, se estava demasiado feliz para chorar.
Olhou para os vizinhos e viu anjos.
Ignorou a saudade e chamou-lhe Natal.