"O Trem das Onze" (memórias)...
ROMI
Lamento sempre quando morre alguém que gosta de viver, independentemente da idade . Gostar de viver é algo comum a muita gente, mas gostar de permanecer vivo é diferente. É não parar, é continuar a produzir, dar continuidade a uma obra que não lhe garante longevidade, mas que o projeta para além da morte.
Morreu o Ti Manel Gervásio, compadre da minha avó. Escultor anónimo, de peças ímpares, que foi espalhando pela aldeia.
A minha avó, muito abalada com a morte do compadre, sentada ao lume, rezava o terço. Eu, entretida a contar as traves do teto da cozinha. O silêncio era quebrado apenas pelo crepitar da lenha. Lá fora, nada acontecia.
A minha avó foi-se deitar sem jantar. Aninhei-me ao pé dela e abracei-a em conchinha. Vencida pelo cansaço, adormeceu rapidamente.
Fiz torradas à lareira e acompanhei-as com café quente. Liguei o rádio, bem baixinho. "Adoniran Barbosa, O Trem das Onze..." tocava suavemente:
(...) Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã (…)
O rádio murmurava uma despedida , e eu, tal como o "trem", sabia, e sei, que o tempo não espera por ninguém.